A felicidade torta

Jairo Marques

“Zimininos”, na semana passada, a comoção foi imensa com a narrativa em torno da história da Danielle Nobile, que, recentemente, entrou para o time dos “malacabados” e tem encarado essa fase da vida com uma energia incrível. (Quem não leu, basta clicar no Bozo)  

Mas eu sempre me preocupo com o fato de que, de alguma maneira, estar “enfeitando” a dureza que é a vida de alguém que tem uma deficiência neste país.

O fato de muitos “estropiados” enfrentarem seus desafios diários não quer dizer que essa realidade seja bacana, seja melzinho na chupeta, muito pelo contrário.

Ser tetrão, por exemplo (tetrão é aquele povo que dá um trabaaaalho danado, pois tem movimentos restritos em membros inferiores e posteriores), é conviver com dificuldades agudas, é ter de encarar um caminhão de abacaxi e descascar todas elas em um só dia.

Essa condição física exige cuidados diários, muita concentração para tocar adiante, severas restrições para um bocado de coisas. Em suma, é broca.

Evidentemente que o “galerê” dribla tudo isso e faz gol de placa. Os exemplos estão por aí aos montes. De toda forma, convidei minha amiga Carlena Weber, um gaúcha de parar o trânsito por uma semana 😉 , para dividir com o blog um relato que mostra um bocadinho das sensações de se encarar um tetraplégico.

O texto é arrebatador e remete a quem lê a uma viagem sobre os privilégios de ser “inteirinho”, de nem ter de pensar sobre demandas e desafios desse grupo de pessoas.

É “di certeza” que vai ser importante, de alguma maneira, para a existência de cada um de vocês….

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“Quando eu tinha 21 anos, sofri um grave acidente de carro que me deixou tetraplégica. Para completar a tragédia, quatro dos cinco tripulantes do carro morreram, fui a única sobrevivente. Além de perder meus pais, um primo e uma amiga, perdi o chão, minha identidade e tudo que até então entendia como vida. Óbvio que não tirei de letra.

 Não sei por qual motivo muitas das pessoas que me conhecem possuem a ideia ridícula de que sou imune às dores do mundo por ter passado por todo esse perrengue há 12 anos. Nãnanina não! Quem passa por isso, não se torna uma heroína e muitas vezes percebe que a positividade diante de todas as situações se torna uma cobrança chata. 

 

Depois do acidente, fiquei oito meses em uma UTI, naquele morre não morre, porque simplesmente respirar parecia uma missão impossível. Passei Natal, Réveillon e aniversário de 22 anos, em março de 2001, sem comemorar, pois já estava cansada de sofrer. Pedia todos os dias para morrer, mas ainda bem que ninguém naquele hospital me levou a sério! 

Não sou religiosa e não acredito que sobrevivi por salvação divina. Considero injusto este comentário, pois quatro pessoas muito legais e com muita vontade de viver morreram no acidente. A seleção divina é criteriosa?

Também não aceito a ideia de que minha salvação foi baseada tão somente em minha vontade de viver, afinal muita gente cheia de vida morre todos os dias. Sinceramente, acredito na força dos profissionais da medicina que foram maravilhosos comigo e na positividade da energia de meus amigos e familiares que torceram por mim.

Depois de tanto tempo longe de casa, o retorno, que deveria ser um marco na minha experiência como HIGHLANDER, não me trouxe respostas positivas.

As dores físicas já não me incomodavam tanto, entretanto o vazio na casa e a falta de perspectiva e informação em relação às mudanças do meu corpo me levaram a viver um luto “necessário”.

Dei a mim o direito de ser humana. Chorei por coisas banais como a pele cheia de espinha, a cabeça quase sem cabelo, mas também por coisas sérias como a dor indescritível causada pela perda de pessoas tão importantes para minha vida.

Fiquei isolada no quarto durante muito tempo. Mentia que estava dormindo quando algum amigo ia me visitar. Fechava os olhos para qualquer superfície que pudesse refletir minha imagem. Era uma fase muito séria: fiquei um ano sem me olhar no espelho (porém hoje não vivo sem!). Foi também nesse período que alimentei o pior dos sentimentos: a autopiedade. Achava-me digna de uma história de cinema (daquelas bem dramáticas) porque nenhum ser humano no planeta poderia estar sofrendo mais do que eu! Fala sério né… 

Aos poucos, minha tristeza transformou-se em raiva. Brigava com todo mundo, toda hora, por qualquer motivo. A mais infeliz do mundo poderia não ser eu, mas com certeza era a mais chata! A raiva me fez acordar do luto porquê despertou a vontade de acreditar que a vida estava sendo muito injusta comigo e que eu precisava fazer alguma coisa pra reverter esta situação. 

Em 2003, comecei a pesquisar sobre fisioterapia e reabilitação e consegui internar no Sarah (unidade Brasília). A vida voltou a ter sentido quando entendi que a maior deficiência era a vergonha da cadeira de rodas, das limitações físicas e tudo que envolvia o dia a dia de uma pessoa que está fora dos padrões de “normalidade” que predominam em nossa sociedade.

Na verdade, a vida tetra me ensinou o que deveria ser básico para todas as pessoas: a certeza de que ninguém vive de forma tão independente a ponto de nunca precisar da ajuda de outras pessoas; a capacidade de enxergar um mundo de diversidade muito mais rico do que o que havia vivido até os 21 anos; e o poder incontestável que cada um tem de reinventar sua história.

Não me considero privilegiada por ter sobrevivido a uma tragédia, me considero privilegiada por ter a certeza de que a tetraplegia não é minha única característica.

Sou Assistente Social, dona de casa, namorada, tia, irmã, amiga. Muitas pessoas acreditam que as limitações da vida tetra me tornam incapaz de ser independente… Acredito que deveríamos rever nossos conceitos a respeito de independência, afinal de contas, a VIDA É FEITA DE ESCOLHAS e eu escolhi seguir tocando em frente. Como diz a canção:

“O que eu tenho de torta, eu tenho de feliz…”

Comentários

  1. Conheci essa pessoa maravilhosa, aprendi muito da vida com ela e sua história,e com o Marcelão que foi o responsável pela minha ida ao Sarah…Vc é muito especial…bjs espero um dia te encontrar de novo…pra ficar batendo altos papos rsrs

  2. O grande desafio que nos foi imposto por deus é a vida pois para vivermos temos que viver todos os dias para termos consciencia dela voce foi vitimada por uma fatalidade seus amigos que a acompanhavam pereceram nela mas voce sobreviveu a ela porque voce foi escolhida por ser guerreira e ser tetraplegica não a impede de ser vitoriosa na sua nova condição de vida a qual voce ja esta se adptando e se conhecendo como pessoa e um ser humano incrivel e vencedora pois nesse mundo viemos para exercemos um projeto em que nos conhecendo melhor sairemos vencedores pois o seu esta começando e muito bem pois ja esta fazendo trabalho de assistencia social ajudando as pessoas a serem mais felizes passando para elas a sua experiencia de vida como uma pessoa que esta encontrando como viver intensamente e não se lamentando os fatos da vida eu me sinto emocionado por conhecer a sua historia e de poder lhe agradecer por sua entrega e bravura em busca de seus ideais de vida que deus nunca deixe de te acompanhar nesta tua luta…..

  3. Oi tiooooo!!!! Voltando aos pucos. Saudades e mais saudades. Na medida do possível conforme o Fê deixar me atualizarei das novidades desta combi.
    Beijooss e estou apaixonada por este menino!!!! RSRSRS.
    Você precisa conhecê-lo. Já confirmado no próximo encontro que tiver, tomara que em breve!!! KK.

  4. Excellent read, I just passed this onto a friend who was doing some research on that. And he just bought me lunch as I found it for him smile Thus let me rephrase that: Thanks for lunch! “Any man would be forsworn to gain a kingdom.”

  5. Como não sentir orgulho dessa minha amiga..
    Uma tetra linda, loira, alegre, inteligente, bem humorada, perspicaz e mto coerente com a realidade..

  6. Realmente vivemos dias (anos, na verdade) de grande tristeza, mas o fato de a Carlena ter sobrevivido deu forças pra família seguir em frente e lutar pela vida. Ela é minha heroína sim, por ter tido a capacidade de se reinventar e ser feliz. amo essa menina.

  7. Amei mais essa materia Jairo, e ela foi sincera em todas as palavras nós os “malacabados” como vc diz, nos sentimos em certos momentos, pessimos tristes, mais ai vem aquela do ficar no fundo do poço não vai adiantar nada, e começamos a buscar luz no fim do tunel e escadas para subir do fundo do poço escuro. Força de vontade, coragem, garra e determinação é tudo que precisamos, dores todos estamos sujeitos a ter nessa vida, mais o que não podemos é cair na vitimização. Parabéns Carlena, você é show de bola menina.

  8. Este relato é super sincero e lembrou-me de vários amigos meus q ficaram cadeirantes mais ou menos na mesma idade q ela. Todos eles tiveram este tipo de reação logo depois de deficientes. Eu mesma tive uma fase complicada de revolta e questionamento sobre Deus e olha q nasci def. Sou pc. Acho q esta revolta q me impulsionou a ser o q sou hoje. Bjs e bom fim de semana.

  9. obrigada Jairo por compartilhar histórias como essa! fiquei paraplégica há 3 anos e ainda oscilo meus momentos de raiva e luto, mas histórias assim me dão a maior força pra seguir em frente! obrigada Carlena, você é linda!

  10. Fantástica a consciência do luto, para se elaborar a grande perda. Quando o Billy sofreu o acidente eu dei todas minhas panelonas, aquelas de fazer feijoada,rabada e mocotó. Achei que nunca mais cosinharia para um monte de gente. Isso aí passou, isso aí passou… e vamos à feijuca e à luta empurrar nossa kombi ladeira acima..

    1. Me identifiquei com este comentário pq logo que voltei da UTI comecei a dar minhas roupas e sapatos pq pensava que nunca mais sairia de casa… A Kombi voltou a funcionar com toda energia aqui tb!! Vamo que vamo!!

  11. poxa! sou péssima pra comentar e fazia tempo que não vinha aqui no blog. mas esse post foi maravilhoso! parabéns

    1. Carol, amiga da primeira internação, você também faz parte desta história e me ajudou a construir esta forma de me enxergar dentro da sociedade.
      Um beijão

    1. Conceição, não fique com vergonha. Cada vida é diferente, não é? Inspire-se, mas goste da sua realidade!! 😉

  12. Olá,Danielle
    Temos mtas smelhanças e uma diferença,Tbm fiquei Tetra(23 anos) só q nem sequer podia falar,perdí tbm a fala.
    Perdí meu pai,um tpo dps,meu marido p/ outra só não perdí a fé em Deus e foi esse Deus q mne ajuda a cada passo q dou em um andador de rodinhas,esse Deus me deu forças p/ voltar a falar,trabalhar,ser feliz!
    Temos um ponto em comum,além de todo esse aprendizado do q é viver,q é diário, como vc tbm aprendí q ninguém pode tudo.
    Sempre estamos precisando uns dos outros,p/ seguirmos nosso caminho.
    Continue c/ essa força e mesmo q ñ acredite,é Deus quem dá.

  13. Como ajuda essa questão, de começar a frequentar um centro de reabilitação,ajuda a entendermos e nos aceitar.
    Comigo foi assim também,quando parei de andar,fiquei meio “revolts” e não aceitava a cadeira.
    Com a ida para um centro de reabilitação,tudo se transformou.
    Hoje tenho até a “cadeira” como apelido. hahaha.
    Beijão para a Carlena,belo relato e uma história de vida vencedora.
    Abraços Jairão!!

  14. Me identifiquei com muitas palavras da Carlena,apesar de não ser tetrão.Essa coisa da cobrança, de ter que ser sempre positivo,de ter que ser um herói pros outros,de não poder reclamar por algumas besteirinhas de vez em quando é muito pesada,é uma coisa chata..isso nos tira um pouco a identidade e a humanidade ( justamente o que faz com que todos sejam iguais)..tb me fez pensar sobre Deus,religião,planos,etc..foi bem legal.Gostaria de conversar mais com a Carlena um dia que for a POA ( vou seguido ao médico e à Santa Casa), se ela quiser.Abraço!

  15. Belo texto.
    E quem de nós não passou por esses perrengue?
    Isso mesmo Danielle e amigos, a vida contínua e precisamos estar atentos e fortes.
    Abraços

  16. Aí, Jairão! Vc tá escolhendo os relatos que vai apresentar no blog pela beleza das modelos? rsrsrs brincadeira, hein?
    Agora falando sério. Mais um belíssimo depoimento com o qual me identifiquei bastante, inclusive com a maneira de pensar da Carlena. Adoraria ter tido a força da Danielle Nobile pra enfrentar a situação logo de cara, mas a minha reação foi mais parecida com esse depoimento de hoje.
    Enfim, gostei muito do post, especialmente das reflexões de ambos.
    Abs

    1. Ronald, a beleza é realmente um critério para elevar a audiência ahahahahahhahahahahah…. De alguma forma, eu “acompanho” a sua história desde o começo, não é?! E acho que vc, apesar dos perrengues, driblou relativamente rápido o tal do luto… lembranças, perrengues e dores serão para semrpe… mas isso, cada um tem sua mala deles, não é?! Abraswss

    2. Ronald, grata pelos elogios! Também não saí “dessa” logo de cara…mas permita-se todas as fases porque no final tu vai entender a importância de cada uma delas e uma não existe sem a outra.
      Um beijo

  17. Jairo , é sempre bom reler histórias de quem é alto astral e de bem com a vida… E a Carlena é uma dessas pessoas! Beijos pros dois!

  18. Apesar de não ser tetrão,me identifiquei muito com o texto da Carlena.Essa cobrança de que “vc teve que se ferrar pra ser exemplo”, essa coisa do “vc tem que ser positivo o tempo todo” e não poder dar uma reclamadinha básica de frescura de vez em quando é uma cobrança muita pesada e nos torna inumanos..eu passei tanta coisa nessa vida que hj faço mais manha do que quando era criança ( me dou ao direito,depois de tanto calo!),não que isso seja regra,claro que não.Tb modifiquei-ou moldei não sei- minhas idéias próprias de Deus, de religião,de planos..se um dia pudermos e a Carlena quiser, gostaria de manter contato com ela,conversar mais ( sou de Bento Gonçalves,vem tomar um vinho!)..adorei as palavras dela! Abraço!

  19. meninas admiro vocês que vão com cara e coragem sempre sorrindo enfrentando suas dificuldades, eu só sou do lar e artesão e as vezes reclamo da vida, é só olhar pra vocês e sentir toda esta energia que passam pra nós vão em frente abraço Diones.

    1. Obrigada DIones. Cada um vive da sua forma e não existe melhor nem pior… cada dificuldade é única para quem vive e difícil comparar.
      Um abraço

  20. Jairo, a história da Carlerna é surpreendente! Eu a conheço há alguns anos, mas não sabia a fundo de sua história, por isso mesmo fiquei aqui toda emocionada lendo o texto. E como vivo na condição de tetraplegia tbm, me identifiquei em vários aspectos como ela. Mas o fato dela ter perdido pai, mãe e mais 2 pessoas e ainda conseguir dar a volta por cima diariamente é o que a faz única e especial nessa vida que levamos.

    Ter o título de GUERREIRA é pouco pra você minha amiga, pois mereces o melhor da vida. Parabéns, que Deus a abençoe.

    Mari

  21. Suspiro profundamente! bora seguir em frente. Desejo a loira linda sucesso e mais sucesso, pois ela já brilha.
    Minino bão bjosss….

  22. Mesmo tendo 13 anos de lesão, lendo um texto assim, a gente repensa em tudo de novo…não sei se entendeu, mas é isso…bjs

  23. Ahhhh Carlena!!!! Nos reabilitamos juntas! Temos o mesmo tempo de lesão! Essa fase do luto, é “froid” me lembro de não querer tirar foto na cadeira, e não querer receber visitas no hospital, não queria que ninguém me visse “assim”, acho que a troca de experiências foi e é fundamental, há doze anos atrás, só indo pra um centro de reabilitação pra conhecer alguém que tá passando por isso, hoje em dia, temos a internet e acho que por isso, quem tem acesso a inclusão digital, se informa e certamente se reabilita mais rápido! Agora, imagina a 30, 50, 60 anos atrás???

    Bejokas! 😉

      1. Eu sei o que era ser cadeirante há 60 anos atrás.Ainda bem que sobrou um tempinho para aproveitar as facilidades do tempo atual.
        Bjs
        Beth

    1. Tabs, penso também como as coisas mudaram de 12 anos para cá… quando nos acidentamos não tinha esta onda de rede social, que nos aproxima, divulga e oferece tantas informações sobre a nossa deficiência. Possibilita trocarmos experiências e conhecer pessoas…
      Um beijo

  24. Estou impressionada com está história, e não venha me dizer que não é heroina, pois para mim ela é sim a minha heroina CArlena, um exemplo de vida, que força!!! Parabéns pela materia JAiro, encaminhei para meus contatos esta mensagem!!!

  25. E ela esta cheia de razão, moça bonita que ri , que chora e que vive! Mas né, ser cadeirante ñ é legal mas faz parte da nossa vida, então que ao menos ela seja o mais feliz possível! Estamos longe de ser heróis, mas somos corajosos e determinados e se o pensamento vai longe o corpo acompanha! Um beijo

    1. Acredito que coragem e determinação não dependem da deficiência e sim como tu encaras a tua realidade.
      Obrigada.
      Beijos

  26. Adorei! Além de linda, super sincera!
    Um relato super importante e emocionante.
    Porque gente de verdade também sofre, também reclama, também fica chato e isso não faz da pessoa melhor ou pior, só humana.
    O blog começou o ano bombando, hein?
    Beijos

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