Tio Lázaro

Jairo Marques

Engraçado, nunca contei aqui no blog que tive um tio cegão. Acho que é porque a minha convivência com ele foi muito pequena e minhas lembranças não passam de alguns relances do tio Lázaro.

Ele morreu quando eu ainda era miúdo e não juntava direito “cré com lé”. O que não esqueci, afinal toda a ‘famiage’ repercutia o fato, é que tio Lázaro, ou “Lazo” para a maioria, era a elegância em pessoa.

Usava roupas finas, lenço bem colocado no bolso da camisa sempre bem engomada. Era um luxo o cegão do clã dos Marques… :).

Mas o motivo de eu ter puxado isso da cachola foi um email que recebi da Ana Carolina Ishikawa, que, sem eu nem pedir, disse que era minha “fã de carteira” 😀 .

Olha só o questionamento que ela me fez: “Sou sócia de uma loja de sapatos, bolsas e artigos femininos. E desde sempre tenho uma enorme curiosidade sobre como as pessoas com deficiência visual fazem para adequar seu estilo próprio de se vestir, calçar, se embelezar aos artigos que estão disponíveis no mercado, sem precisar de uma cuidadora. Então, como eles fazem?”

Matutei, matutei e, realmente, usando apenas meu faro da turma de “malacabados” não consegui decifrar. Daí, pensei que, na minha família, também era um mistério o fato de o tio Lazo, sem ajuda de ninguém conhecido, conseguir se vestir tão bem.

Indo mais longe, fui pensando em meus amigos prejudicados das faculdades dos olhos. Todos são mega ultra blaster elegantes, andam sempre nos trinques, com combinações bem feitas, sem exceções.

Mas para responder a pergunta da Ana Carol, antes de mais nada, é preciso que a gente pense em algo básico para entender qualquer ‘matrixiano’, seja ele ferrado no sentido ou no movimento que for: a sua realidade, o seu potencial, as suas possibilidades não valem e não representam a do outro!

As deficiências, tanto faz físicas ou sensoriais, nos moldam para a vida de uma maneira única. As formas que criamos para brincar de viver são, muitas vezes, diferentes e particulares.

“Tá certo, tio, mas só isso não explica como o povo cego faz par se vestir de forma ‘bacanuda’. Como eles fazem para combinar cores, ‘perezempe’”?

Fui pedir ajuda para a minha amiga puxadora de cachorra mais ‘charmozurenta’ e sabida: a Ju Braga, mãe do cão-guia Charlie.

“No meu caso, eu prefiro fazer compras sozinha. Claro que se tiver uma companhia é bem-vinda, mas o que eu gosto mesmo é de ir sozinha, pegar opinião das vendedoras e no final ficar com a minha opinião mesmo. 😉

Como enxerguei até os cinco anos de idade, tenho noções de cores, exceto estas com uma mistura aqui e outra ali com nomes modernos… (do tio: os cegos também adquirem noções de cores particulares, comparando-as a algo tátil. Tipo, vermelho, quente).

Procuro frequentar as mesmas lojas para fidelizar os vendedores que já sabem meu estilo de vestir. Quando compro algo, procuro me sentir bem. Toco no tecido, sinto se a textura é agradável ao meu corpo uuuiii, se fica interessante, bacana e também quero saber se tem estampas, se tem cores. (do tio: ou seja, quanto mais detalhista for o atendente, mais satisfeito ficará o cego. Deixe que ele pegue e sinta bastante o que será comprado).

É muito engraçado quando pego um vendedor de primeira viagem em atender um ‘malacabado’, porque no começo não sabem como fazer. Claro que euzinha aqui já quebro o gelo e faço algumas brincadeiras e logo se tornam íntimos.

Sapatos a mesma coisa. Dou trabalho porque quero usar, andar, me sentindo desfilando para saber se vou me sentir bem nos próximos dias usando o bendito. Procuro conhecer minhas coisas pela textura, modelo, e dificilmente compro algo igual para não me confundir.”

Em resumo, o lance inicial é respeitar o outro em suas diferenças, sem achar que ele é um bicho de outro mundo. Se o consumidor é cego, surdo, cadeirante, pczão, em primeiro lugar, ele é um consumidor.

Agora, é fato que os cegos, em casa e com seus pertences, têm uma organização que os mortais comuns não têm. E também, como sabem que serão muito observados pela curiosidade humana, tratam de dar um up no visu e não deixar barato.

Logo, eles têm de maneira mais esquematizada em suas casas suas roupas e sapatos (por cores, por formas, por estilos, por tamanhos, por detalhes). Geralmente, não vão entulhar tudo na gaveta como eu… Assim, fica mais fácil de se programar para estar bem na fita.

 *Imagens do Google Imagens

Comentários

  1. Que emoção ver meu nominho no seu blog!!! *.*
    Adorei a resposta!!!
    Minha próxima missão é conseguir fazer um catálogo da coleção nova em braile e com textura dos tecidos!!! Rezemos para que saia perfeito!!!

    Beijo e muitíssimo obrigada!

  2. Jairão que delicia ouvir histórias tão deliciosas desse nosso mundo da matrix, conheci um carioca velejador em um dos campeonatos de Iatismo que era cego e ele tinha um cão guia tão inteligente e esperto que conquistou o coração de toda equipe, ele veleja perfeitamente apenas sentindo o vento no rosto, e digo como iatista, velejar não é fácil não. Ju e Charlie obrigado por dividirem esses “causos” tão engraçados com a gente, e concordo com vc em numero e grau, o primordial é “Respeitar o outro em suas diferenças.”. Abraços Jairão.

  3. Roupas e objetos separados e organizados?
    Vixeeee Maria!!! Se eu fosse cega tava perdida!! Eles deviam dar consultoria!
    Respondendo à sua pergunta no último post: Tou bem Tio! A luta continua feroz, mas estamos firmes! Se Deus quiser, no próximo encontro iremos! Beijão!!!

  4. Muito legal esse assunto, tive uma amiga cega que cuidava da casa toda sozinha e ainda cozinhava e quando teve bebê e as pessoas levavam roupinhas ela perguntava a cor para organizar na gaveta, dizia que nao queria a filha vestida feito palhaça. Tudo lá era extremamente organizado para ela poder se virar numa boa. E o Luís tem um tio que ficou cego depois de adulto e continua consertando tudo em casa com tanta desenvoltura que até parece que está enxergando. Cada um acha seu jeito de fazer as coisas e é isso que eu acho o máximo no ser humano, a capacidade de adaptação. bjs

  5. Tive a sorte de conhecer o MAQ (Marco Antonio Queiroz) do site Bengala Legal. Esse rapaz perdeu a visão devido à diabete e nem por isso perdeu o humor e a vontade de seguir em frente.
    Sempre me surpreendi com a facilidade que ele se desloca pelos espaços sem ajuda de nada. Claro que nao se pode deslocar nenhum movel do lugar. Agora muito interessante é o programa que ele usa no computador para ler as coisas para ele. A fala é tão rapida que nos da impressão que tudo é falado em outro idioma.
    Enfim cada deficiencia requer certa organização para nos auxiliar a ter independencia. No meu caso nada pode ficar muito no alto, ja que sou baixinha sem ser anã!

  6. Menino,adorei…..eu quando mais nova fui aquela miope “fundo de coca cola”,meu professor “gentil” e “educado”,me chamava assim em sala de aula,mas sempre tirei de letra,voltando ao que quero falar,sobre a organização das coisas:eu tenho tudo no lugar determinado,então não preciso de luz,aprendi a não depender dos oculos,caso perdesse ou quebrasse….cada um cria seu modo de melhor viver….bjssssssss

    1. Oi, Silvia, eu ia comendar essa maquininha, mas acabei esquecendo! Que bom que vc tocou no assunto… Esse dispositivo existe mesmo, mas, pelo que me disseram os amigos cegos, é caaaaaaaro que só! Beijos

  7. Eu enxergo um pouco então me viro, mas além da noção de cores “quentes” existem outras.. por exemplo: bege é uma cor mais calma, mais apagadinha..verde-limão é uma cor que os câmeras das tvs iam te achar e te filmar no meio do estádio lotado.. aí vao tentando combinar as roupas a partir dessas noções que lhes são passadas. Quanto à organização da casa, eu tb dou meus jeitos.. até queria te contar via email se me permite. Abraço e bom meio de semana!

  8. que delícia de post! Ei, também sou parecida com a Jo, só me falta um Charlie! ou seja, existe um jeito tátil de vestir, de calçar, tem que ser agradável ao toque, mas, não existe uma moda cega, eu diria, existe uma moda para cada cego (a). beijos

  9. RSRSRSRSRS, adorei!!!!! E é exatamente assim mesmo!
    Todos vem me perguntar sobre esta particularidade e confesso que levei um tempo para elaborar como fazia, pois tudo para mim fica tudo tão automático que pego o que quero e pronto. Mas com tantos questionamentos comecei a pensar e o tio como sempre descreveu muito beeeeeem!
    Isto não quer dizer que o meu guarda-roupa e gavetas são um primor, mas a gente dá um jeito para não sair com uma meia preta e outra marron. Aliás, para isto não acontecer, principalmente os homens que acabam por usar muito estas meias para combinar com os cintos, uuuui, o meu namorado tem uma dica que funciona, quando a moça que limpa a casa dele não muda sem querer, rsrsrs. Ele coloca todas as meias pretas num saquinho de pano e as marrons num saquinho de plástico. São formas que parecem inviáveis, mas que para nós faz o maior sentido. Sábado fiquei toda feliz, porque o tio gostou do modelito e da cor que eu estava usando, certo tio?
    E é isto crianças, sempre atenta para não sair vestida para o carnaval, hahahahahah.

  10. Senta que lá vem história: Funcionário de um hotel em Israel, conheci um hóspede cego. Durante as minhas horas vagas, ajudei ele em Israel, e aí ele perguntou se eu gostaria de ajudá-lo em Londres. Aceitei o convite e trabalhei para ele nove meses lá na beautiful London. Aprendi muitas coisas curiosas, contarei uma delas: em todos os telefones, o numero 5 tem um relevo… isso faz com que eles não liguem errado. Quando estou no escuro, uso essa manha que aprendi. Um grande abraço

  11. Sendo sincera, nunca tinha pensado nisso não. Convivi muito com deficientes visuais na escola do meu pai (já te falei disso, né? que meu papaizinho tinha uma escola de massoterapia e tinha uma turma de formação como massoterapeuta adaptada para deficientes visuais, ele montou isso quando perdi a audição, foi a forma dele de trabalhar o trauma sofrido) e eles estavam sempre tão bem vestidos que, pra mim, nunca virou curiosidade.
    Ainda assim, amei a explicação! Nunca tinha pensado nisso e faz todo o sentido!
    Ademais, textos da Ju são sempre um deleite!
    Beijinhos

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