Coisas que você não quer saber

Folha

A provocação estava logo nas páginas iniciais do livro, que abordava atos de violência cometidos por crianças e adolescentes: “Nesta obra, há vários casos que você, normalmente, não vai querer saber”.

O soco me pegou de jeito. Incomodou meus pensamentos até o momento em que decidi perturbar outras pessoas, os leitores.

Mais do que fritar meu estômago construindo situações horripilantes de abandono, degolas e aviõezinhos do tráfico, pirei na ideia de imaginar quem são as pessoas que conseguem sobrepor as amarras do “não é problema meu” e enfrentar realidades azedas, vidas dilaceradas e crianças azucrinadas pelo vício. Ou seja, pirei naqueles que querem saber.

E, cada vez mais, quer se saber menos. O idiota que abre o vidro do carro e joga na rua o plástico da gosma verde que comia não está nem aí para a Voz do Brasil e bota para tocar seu MP3 do “como é lindo o meu umbigo” quando percebe pelo retrovisor que o seu lixo estaciona na sarjeta de uma escola. Quem irá recolher? Quem irá limpar o grude da rua? Quem irá sofrer com a enchente? Não quero nem saber.

Não se quer saber o que a prefeitura fará com os “craqueiros” resultados da milésima desinfecção do centro de São Paulo. Basta saber que a ciclovia vai ficar livre. Não se quer saber o que haverá para comer no Natal no abrigo dos idosos, parte se contenta com a ideia de haver um lugar para depositar a velhice.

A gente não quer saber se um cadeirante irá demorar duas horas a mais que um trabalhador comum, na hora do rush, para conseguir entrar no lotação e chegar em casa. É problema dele. Muito menos quer saber quantas pulgas tem o vira-lata jogado na rua pelo vizinho. Quer saber, sim, se ele dará um sabão de boa qualidade.

Nessa lista cabem exemplos de chorar lágrimas para encher o Cantareira, mas o formidável é que há quem queira saber. Há quem se dedique a apanhar papel voando na ventania, quem se faça de Papai Noel para o menino internado no HC, quem se empenhe em reconstruir vidas despedaçadas, a fazer uma nova e criteriosa busca de infâncias perdidas.

Não é todo mundo que nasce ou precisa nascer com uma célula de irmã Dulce e vai sair de casa para dar panetone para presidiários, vai oferecer peru para haitiano refugiado em paróquia da periferia. O problema é que há demandas complexas, pesadas e insanas em demasia e almas caridosas em falta.

Por essa razão, é, sim, um alento e são, sim, vibrantes as gigantescas correntes solidárias que se formam durante o período de festas e que muitos veem como oportunismo, como uma tentativa de limpar a consciência de quem fez questão de botar os olhos para correr das feiuras humanas ao longo dos meses.

Boas ações natalinas ajudam a refrescar e desafogar um bocadinho a labuta dos que querem saber o ano todo. Dos que são Páscoa, Dia da Criança, Carnaval, Dia da Amizade e aniversário.

Fazer uma vez no ano é melhor do que não fazer nunca e é oportunidade para reconhecer que, de tanto não querer saber, um dia pode-se também entrar para o clube dos relegados.

jairo.marques@grupofolha.com.br

Comentários

  1. Ai tio vc e seus textos maravilhosos ! Desculpa minha grosseria, mas não pratiquei nenhuma “boa obra” agora no final do ano.
    Vc me cutucou legal.
    Bjs a vc, à primeira dama e toda “famiage” rsss.
    Boas Festas e um maravilhoso Ano Novo !

  2. É isso aí Jairão. Se cada um que pode um pouquinho resolvesse fazer um tiquinho que seja por uma criança, ou um velho, ou algum desafortunado da vida, tenho certeza que muitos labios iriam se abrir em sorrisos, muitas tristezas seriam esquecidas e muitas mágoas arrefecidas. Mas de fato hoje faltam almas caridosas e corações abertos. Lamento.

  3. Vou contar uma coisa para você: eu sempre fui do time dos que querem saber. Adolescente, eu ia a asilos ler histórias e maquiar idosas… Recebia vários pedidos de casamento dos velhinhos e voltava para casa feliz da vida. Organizava ações na escola para arrecadar alimentos, roupas e principalmente para levar carinho. Depois, adulta, sempre participei de todas as campanhas de doação. Orfanatos, hospitais, abrigos… De montar cestinahs a ir visitar, sempre participei. Depois de mãe passei a ajudar outras mães, mães que acompanham seus filhos na UTI e quase nunca são lembradas… Pensam que mãe no hospital não tem motivo para comemorar e nós fazemos o contrário: a vida deve ser comemorada, sempre. Então vou nos hospitais e levo presentes, carinho e informação para essas mães. Daí esse ano, pela primeira vez, a Sofia foi “adotada”. Quando soube, levei um susto. A instituição que atende pessoas com deficiência visual passou todos os nomes de pacientes para que os moradores da região adotassem, respondendo às cartinhas de Natal. Fiquei meio mal, achei injusto, já que muita gente precisa mais do que ela (somos a classe média, nem rica nem pobre, mas sempre tem quem precise mais, né?) A resposta da instituição é que não era por necessidade, era pela festa, pela alegria das crianças em verem seus desejos atendidos. Sofia pediu um joguinho e ficou radiante ao ganhar um saco maior que ela cheio de pequenos presentes. Pensei em todas as vezes que eu montei Kits, será que as crianças ficaram tão felizes quanto ela? Tomara que sim… Seria tão bom se com gestos como esse a gente conseguisse construir uma corrente de solidariedade, independentemente de classe, deficiência ou qualquer outra coisa… Multiplicar solidariedade, multiplicar gestos que tragam pequenas alegrias, para quem quer que seja, até um cachorro, né? Essa para mim é a lição do Natal! Beijo

  4. Olá Jairo, belo texto! Tenho me pegado amarga por ver que atualmente o egoísmo das pessoas está em alta. Não vou economizar água pois o poder público não faz nada… Crianças são aviaozinho no tráfico porque é fácil, dizem as pessoas de coração duro que não querem ver a realidade que vai além do apartamento em que moram, ou da rua em que passam… Natal do sem teto??… mas eles moram na rua porque querem, vão dizer por que não vão pros abrigos? As pessoas não querem saber a política dos abrigos, e ainda quem não tem nada ainda vai ter que se desfazer do cão??? Só mais alguns exemplos além dos seus…
    Fazer uma vez é sempre melhor do que nunca!

  5. Ah, Jairo…Não que Eu seja um exemplo de ser, mas muitas vezes me sinto um E.T sabia?! 🙁
    Tanta gente que faz e fica fazendo propaganda do que fez, como Vc mesmo disse, se auto promovendo…Acho tão deselegante, triste mesmo!
    Mas Vc tá certo, pelo menos, ainda fazem, nem que seja só nas datas, ou só agora, fim de ano. E os que nem fazem?!
    Precisamos conseguir que mais pessoas se doem o ano todo, que busquem uma causa, que ergam uma bandeira, ou várias delas!! Há tantos em completo abandono…Que chega a arder o peito só de pensar!!
    Parabéns, pelo texto!! Parabéns pelas “cutucadas”, sempre com muita elegância!
    Vamos assim construindo um pouquinho aqui, outro acolá.
    Ah, e Parabéns pelo bebê de Vcs que está a caminho!! Bjs.

    1. Nara, é muito, muito deselegante fazer propaganda de ações para o próximo. Mas aí é uma outra batalha que temos de enfrentar, no futuro!!! 😉

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