Médicos

Folha

Ortopedistas costumam usar de pouco rodeio em seus atendimentos. Quebrou o pé, bota o osso no lugar, imobiliza, toma um Lisador de tantas em tantas horas, tchau, de nada. O doutor Nascimento era desses durões, mas penso eu que escondia flores, fotografias de família e mensagens de prosperidade nos bolsos.

Eu era menino e cheguei às mãos dele totalmente avariado. As pernas pareciam ganchos devido às atrofias, a coluna simulava o “s” do Senna e o meu destino como “serumano” era uma incógnita.

Lentamente, o médico consertou  meu esqueleto, dando sustância a minha alma e me aprumando para a vida, nutrindo em mim a coragem de tentar ficar em pé ou de me realizar em outra perspectiva, sentado.

“O que importa, de fato, é a maneira como ele vai poder construir a felicidade. Ele jamais vai conseguir andar por conta própria, mas isso não vai impedi-lo de ser quem ele quiser”, disse ele a minha mãe em minha última consulta.

Por mais que não queiram, médicos trazem consigo, apenas com a sua presença e suas palavras, um possível alívio para a sensação de desespero, um alento para tempos difíceis, uma chance de acalmar a rebeldia dos males que parecem querer afogar as esperanças.

Minha avó Florisbela, que peguei emprestada para sempre de minha mulher, caiu no banheiro na semana passada e quebrou o punho e o quadril. Faz uns dias, também está meio zureta das ideias.

O povo lá de casa ficou em frangalhos com a avozinha machucada e tudo o que queria era um afago menos derrotado do médico: “Não há muito o que fazer. Levem para casa e a mantenham em repouso”.

Mas o que vai tratar as dores da dona Flor? Como ela pode ficar mais à vontade? Ela tem permissão para comer jujuba e feijoada aos sábados? Osso de velho não cola mais, mas um esparadrapo pode ajeitá-la um pouquinho no coração?

Bebês que nascem com deformidades, pai e mãe já imaginam os perrengues a enfrentar, o choro a ser chorado. Mas é o médico o cabra capaz de ajudar a acender uma lamparina que fará serem enxergados novos caminhos nas diferenças.

Quem descobre um câncer, uma doença avassaladora ou uma moléstia incurável, só com pouquíssima informação irá buscar o milagre ou o elixir da cura imediata. Mas vai desejar ouvir histórias bem-sucedidas de conviver com as perdas e saber que poderá mergulhar em piscina de bolinhas de plástico, ir a mais alguns shows do rei ou reler deitado na rede as poesias de Cecília Meireles.

A palavra da moda em medicina atual, em hospitais de ponta, é “humanização”, cujo conceito é mais ou menos o ambiente e o próprio “seu dotô” servindo e amparando o paciente além do alcance científico e técnico, mas também com algum cuidado emocional e com a atenção de um abraço, de olhos nos olhos.

Do lado de cá do bisturi e do estetoscópio, acho o movimento importante, embora avalie que seja árdua a tarefa de ensinar ser humano, algo que se deveria ter começado a incentivar desde o berço.

Como escutei pela TV de uma médica do Einstein, Juliana Fernandes, que se dedica a auxiliar crianças debilitadas por doenças agressivas, em cada um dos pequenos “há uma parte” dela mesma sendo depositada. Que seja sempre a melhor parte.

Comentários

  1. Lindo demais tio Jairo. Realmente é de profissionais de coração aberto é que estamos precisando. Abraços!

    Meiry (Gurupi/TO)

  2. Jairo, olá. Sempre leio seus textos, em parte por conta da profissão- sou médica- em parte por conta de minha história pessoal. Este texto está impagável, parabéns. Algumas vezes sinto sua fina ironia e sarcasmo, mas neste texto pude compreender que isso , no fundo, é só um disfarce para alguém que também sempre tem flores nos bolsos. Um beijo.

  3. Fico feliz com seu texto. Sou médico e a categoria vive um processo de difamação e desvalorização nunca visto anteriormente. Tentamos sempre proporcionar alivio quando a cura não é atingível…. Essa sempre se´rá a nossa missão

    1. Guilherme, acho também que a categoria médica tem sofrido desgaste. Mas o campo para recuperação da imagem é imenso! Grande abraço

  4. O médico é, na média, o profissional mais bem preparado hoje em dia no Brasil,pena que leve muita porrada sem merecer.

  5. Adorei seu texto Jairo! Hoje em dia só vejo textos denegrindo os médicos. Muito bem escrito. Sou médico e sempre procuro passar carinho junto com medicações. Há muita doença incurável e sem tratamento medicamentoso, mas uma palavra amiga e carinho às vezes são os melhores remédios que o paciente necessita!
    Parabéns!

  6. Querido Jairo, que gostoso ler suas palavras sobre alguns de nós médicos que acreditamos na vida!!! Meu pai costumava dizer que de seus alunos ele preferia os mais carinhosos e dedicados aos pacientes, pois técnica e conhecimento aprendemos em qualquer lugar, e a operar ensinamos qualquer um, mas, aquilo que vem de dentro não se aprende nas bancadas, boas faculdades ou grandes congressos!!!
    Acredito mesmo que o que fazemos vai além da “cura física” ou de, como você diz, consertar pessoas. Sem querer ser piegas o mais importante é o amor, sempre e em tudo nessa vida!
    Você, hoje com suas palavras de amor me fez mais feliz!!! Obrigada!

  7. Lendo seu texto me lembrei do neurologista que cuida de mim, desde 1996, porque antes eu era “expulsa” dos consultórios dos neuros que eu ia. O Dr. Danieli é muito sensível e foi o único que deu um jeito de atenuar os espasmos e movimentos involuntários que eu tinha. Uma vez fui buscar as receitas dos medicamentos que tomo (2 de tarja preta e um que só pode ser comprado com aquela receita com 2 folhas – uma azul e outra branca). Ele só me olhou da porta do consultório dele e chamou a secretária, pedindo para ela marcar uma hora para mim. Eu fui na hora e dia marcados e ele perguntou o que havia acontecido comigo, pois ele nunca tinha me visto triste daquele jeito. Eu contei a ele. Depois de duas conversas (ele não cobrou as duas vezes que fui lá), ele disse que eu não precisava de psicólogo porque eu sabia o que tinha e deu um antidepressivo para que eu não sofresse muito enquanto estava trabalhando naquilo que estava me incomodando. Outra vez foi quando eu operei o ombro direito, que estava todo estrupiado e eu estava com espasmos horríveis durante um mês (dezembro). Tudo por que a fisio que trabalha ou trabalhava com o ortopedista disse que eu precisava ter mais cuidado com o ombro, pois disse a ela que havia arrebentado o tendão do bíceps. Quando chegou no ano novo, ele telefonou pra mim desejando um bom ano novo e perguntou se eu estava bem. Eu disse que os espasmos haviam acalmado. O médico ficou aliviado. Pra mim ele é muito, mas muito bom! Legal ter um médico assim para cuidar da gente. Bjs em você, na Thais e no bebe que está vindo por ai.

    1. Caraaaaamba, Su!!! É desse médico que precisamos aos montes! Que baita história… e ele fez total a diferença em sua vida… Obrigado pelo carinho… bjosss

  8. Te compreendo mt bem, Jairo!
    Passei exatamente por todas essas etapas, arrumando a carcaça no HC por dois anos internada e fazendo tudo q era necessário pra q eu pudesse seguir minha vida… Médicos maravilhosos responsáveis por toda essa conquista . Hoje quem é medica lá no HC é minha filha!!! Por isso realmente agradeço a Deus, a minha família e aos médicos de lá que me deram a oportunidade de me realizar como mãe, mulher e profissional!!!

    1. Marcia, vc sempre, sempre me surpreende… Fiquei com nó na guela de saber que sua filha hoje trabalha onde vc tanto “penou” para virar gente… caramba, que bela história… felicidades.. beijos

  9. Mais humano que isso, impossível. Parabéns, querido Jairo. Que você siga nos brindando com estes textos cheios de sensibilidade.

  10. Muito bom seu artigo! Não conhecia seu trabalho, virei fã. Vou mandar para todos o médicos que conheço a frase:
    ” Por mais que não queiram médicos trazem consigo, apenas com a sua presença e suas palavras, um possível alívio para a sensação de desespero…”

  11. Jairo, você como sempre um queridão…
    Hoje sou médica mas já precisei muito deles, talvez isso tenha me estimulado a seguir essa profissão.
    Tento acalentar e passar um pouquinho de conforto, pq sei que meus pais se sentiam aliviados com qualquer palavra positiva que fosse em relação a mim.
    Um beijo no coração dos três!

  12. Bom Dia!
    Otimo texto! Como mãe de um ortopedista e de um anestesista, alem de esposa de ginecologista, concordo com voce, quando diz que humanização se ensina desde o berço. Desde pequenos, nossos filhos foram acostumados a olhar e VER faxineiros, zeladores, porteiros. Tenho certeza que os “meus” médicos fazem isso no exercício de suas profissões.

  13. É Jairo, Vc mais uma vez Fantástico em suas observações!!! Te admiro muito!!

    Alguns médicos olham apenas um braço, uma perna, um ouvido…E aí né?!
    Cadê observar o paciente como um todo. Vê além de perdas e traumas físicos, as cicatrizes do emocional!!

    ” Por mais que não queiram médicos trazem consigo, apenas com a sua presença e suas palavras, um possível alívio para a sensação de desespero…”

    É isso mesmo Jairo, Parabéns mais uma vez, Vc é Brilhante no que faz!!!

    1. Nara, obrigado por tanta gentileza! Entendo todos os desafios que a profissão médica impõe e, muitos deles, não são ligados ao preparo do próprio médico, mas penso, contudo, que a figura do médico já representa um bocado para as pessoas e que eles podem desempenhar um pouquinho melhor esse papel… beijoss

  14. Tive a honrosa oportunidade de conhecer um médico humano, cuja rápida convivência que tivemos há anos atrás na cidade de Limeira/SP se faz sempre atual na minha memória. Dr. Rubens Emboaba cuidou de meu saudoso Pai da forma mais humana e profissional que já vi!!!

  15. Bom dia.Ótimo texto. Trabalho como médico do SUS há mais de 10 anos no interior de São Paulo e tive a grata satisfação de me identificar com seu texto.
    Na correria do dia a dia , aqui ainda existem os abraços de carinho, os sacos de pão de queijo, as infindáveis orações e novenas, o aperto de mão na padaria,o tapinha nas costas no supermercado.
    Muito obrigado pela clareza e doçura de suas palavras.
    Plínio

    1. Doutor Plínio, muito obrigado por sua leitura. E tenho certeza, certeza mesmo, que o senhor entende o afeto que as pessoas, seus pacientes ou não, dedicam a cada pão de queijo. Grande abraço!

    2. Oi Jairo!!! Que texto bonito! Até emocionei. Agradeço muito a Deus pela oportunidade de exercer uma profissão tao fascinante e desafiadora. Mas enquanto eu conseguir trazer nem que seja um pouco de esperança aos meus pacientes, ja ficarei realizada. Depoimentos assim são os que me impulsionam a tentar fazer sempre o meu melhor. Fiquei muito grata pela homenagem 🙂 saudades. Grande abraço

      1. Vanessa, nos acompanhamos desde o tempo que você ainda estava na faculdade!!! É um pouco de orgulho meu ler suas palavras tão comprometidas, ainda hoje.. Um grande beijo!

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